Todo ano, os meses chuvosos de verão representam o momento em que surge nos meios de comunicação um enorme contingente de notícias relatando os devastadores efeitos das enchentes na vida dos cidadãos e no território da cidade de São Paulo. É como se nesse período, as plataformas de diálogo se transformassem em palco para o informe do caos e de problemas aparentemente intransponíveis com os quais centros urbanos devem lidar no seu trato cotidiano com a água.
Nesta semana, a cidade de São Paulo viveu um cenário desse tipo, com uma verdadeira profusão de imagens de ruas alagadas, encostas que sofreram deslizamento, pessoas que perderam seus pertences e meios de ganhar a vida, tudo isso em um intervalo de tempo muito curto. Evidentemente, a pauta imediata torna-se a questão ambiental e as preocupações a respeito da manutenção de uma relação estável entre cidade e natureza, que vem sendo notavelmente prejudicada nos últimos anos pelos efeitos do descompasso ambiental que vivemos após tantos anos de extensiva exploração dos recursos naturais e ocupação irresponsável do território. Apesar da clara ligação entre caso e plano de fundo, é imprescindível confrontar o problema das enchentes na cidade como uma questão, além de ambiental e de caráter técnico, também política e social, ligada às formas como projetos de urbanização se desenvolveram sobre o tecido da cidade em um período histórico de formação que desencadeia nas conseqüências de hoje.
Encarar as consequências desse fenômeno natural que são as enchentes enquanto uma pauta sócio-ambiental é tomar a questão com a complexidade que ela passa a ter no contexto das cidades, onde tudo está submetido a um tipo de funcionamento articulado, de sistema. Em termos de confrontamento técnico dos problemas, esta abordagem sugere duas escalas de aproximação, uma ligada à microdrenagem e às soluções mais pragmáticas que envolvem, sobretudo, a criação de estratégias para retenção de água e aumento de permeabilidade do solo urbano; e uma segunda escala, de âmbito maior, a da macrodrenagem, que demanda o confronto direto com a lógica de ocupação territorial da cidade, a maneira como foram entregues à mobilidade individual motorizada as áreas de várzea dos rios, o mapeamento e restrição de construções em áreas alagáveis e consideradas de risco, e o problema da coleta e tratamento do lixo que tanto agrava a situação das inundações.
Aos aspectos técnico e ambiental envolvidos na tomada sistêmica da questão, deve-se somar a perspectiva política e, também por isso, social que a questão das enchentes em São Paulo revela. Em sua dissertação de mestrado The socio-environmental history of the floods in São Paulo 1887-1930, o arquiteto e urbanista Gabriel Kogan retorna, em um esforço de destacar o enlace político, social e ambiental que as inundações na cidade permitem reconhecer, à origem da questão: um histórico da tomada de decisões ligadas ao desenho urbano e ao planejamento que consumaram o cenário que vivemos hoje na cidade. Essa constatação aponta para o fato de que as enchentes que vivemos hoje conotam uma leitura sócio-ambiental, uma vez que o desenho e transformação da paisagem das cidades sempre esteve alinhado aos interesses das classes dominantes no controle dos meios políticos e materiais para formatar o território. Essa leitura é central para reconhecer que populações pobres, relegadas historicamente às áreas mais vulneráveis e periféricas das cidades, são as mais afetadas pelas consequências da relação desmedida entre homem, projeto, ocupação e natureza.
Tamanha complexidade de questão demanda respostas radicais e assertivas para o problema, o que faz com que as soluções pareçam impossíveis ou inalcançáveis quando pensadas a curto prazo. No entanto, não faltaram projetos que tentassem mediar de forma mais responsável a ocupação, como o de Saturnino de Brito no final da década de 1920, ou de fato atacar verticalmente um problema já assentado, como as propostas mais recentes do Grupo Metrópole Fluvial da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Essas boas ideias circulam dentro dos campos especializados, tanto acadêmico quanto profissional, mas em raras ocasiões chegaram ao ponto de serem colocadas em prática, tendo sido sistematicamente ignoradas por gestões descomprometidas com as empreitadas que a solução do problema requer.
Mais do que isso, o caminho parece cada vez mais restrito: não bastasse o fato de nos últimos cem anos termos canalizado 1.500 km de cursos d'água sob algumas das principais avenidas da cidade, retificado o caminho dos três principais rios que desenham a origem da ocupação de São Paulo e cimentado as várzeas para construir as vias marginais, agora também lidamos com um corte orçamentário e o custo político das decisões: os recursos destinados à construção de infraestruturas para a contenção dos danos tem a cada ano diminuído mais, ao ponto de em 2019, a verba para a construção de piscinões na cidade ter sido zerada.
É um cenário crítico que convoca ações em diversos setores administrativos e que tem como único norte a tomada de decisões incisivas a respeito da forma como seguiremos ocupando o território da cidade.